Em meu mundo, eu morava num lugar conhecido como Camelot – a maior cidade-estado de todas. Rica, próspera, mitológica... cheia de toda sorte de criaturas fantásticas e aventuras. Um burgo gigante, estendendo-se por quilômetros em todas as direções. Minha vida ali era, na medida do possível, pacata e ordinária... como qualquer outro membro da guilda de ladinos e pilantras profissionais viveria.
Num belo e aparentemente normal dia, ao utilizar meus poderes para tentar fugir de autoridades policiais – por motivos que não vêm ao caso - acabei sendo teleportado para cá, para o lugar que vocês chamam de Pedra Rachada.
Pedra Rachada, neste mundo, é um pequeno vilarejo nos outskirts de Megacity 1. Povoado com pessoas simples, honestas, acolhedoras e de bom caráter. Tive muita sorte em parar aqui, de todos os lugares possíveis.
Dinheiro ainda é uma questão delicada para mim....
Pelo fato de ter sido “jogado” neste plano de existência, sem planejamento ou pesquisa prévia, não sabia quase nada sobre os costumes e regras locais. Isso em si é uma ótima desculpa, claro – mas também é um fator que pode me colocar em situações de bastante risco.
Como Pedra Rachada é um hub de encontro e concentração de pessoas com códigos de conduta mais... elásticos, por assim dizer, foi fácil receber lições e orientações bem específicas sobre o valor do dinheiro, onde guardar, onde não guardar, como extrair o máximo de valor do dinheiro, como usar e guardar, dentre outras informações importantíssimas.
Agora que estou começando a participar e realizar contratos, vou passar a ter uma vazão significativa de dinheiro – assim espero.
Por enquanto estou controlando minhas ambições.
Voltar para Camelot seria muito bom – não deixei uma família para trás, mas lá é o lar que conheci por toda a minha vida... um lugar onde eu não sou “especial”, onde sou apenas mais um goblin dentre vários.
Por enquanto pretendo acumular algum dinheiro e desenvolver contatos que possam vir a fazer a diferença para a vida neste novo plano de existência. Conseguir gifts também é essencial, seja para ter o poder necessário para voltar, seja para ter o poder necessário para ficar neste plano.
Não vou me arriscar demais – viver aqui, viver em Camelot.... são mundos muito semelhantes. Morrer por dinheiro não vale à pena... Mas morrer por poder, é sempre uma atitude menos questionável.
O momento mais importante da minha vida, eu acredito, foi quando fui teleportado misteriosamente para um mundo desconhecido, distante, exótico e caótico, durante um inocente e tranquilo dia comum em Camelot.
Não consegui descobrir como isso aconteceu, se existem outras pessoas envolvidas no incidente ou se é algo latente em meus limitados poderes de teleporte. Minha vida em Camelot, para ser honesto, estava estagnada há muito tempo na mesmice de uma rotina bem ordinária, sem muitas expectativas que não fossem a prisão, ou o exílio.
Ir para outro plano de existência definitivamente foi o ponto alto desses dias, e me trouxe uma série de oportunidades que serão muito bem exploradas.
Melchior, um sátiro, líder maior da guilda de ladinos em Camelot. Mais velho, ele exerce um papel de influência e paternidade. Não é exatamente um bom exemplo para a constituição moral e ética de uma pessoa, mas é alguém que tem minha extrema confiança.
Caspar é um loxodon, mercador de frutas, verduras e alimentos, que tem uma banquinha de vendas no centro da cidade, e trabalha praticamente de sol a sol. Um grande exemplo de perseverança e trabalho duro – não é tão influente como Melchior – mas é tão bom amigo quanto. Ambos de certa forma “cuidaram” de Bhaltazar na juventude, em momentos de dificuldades.
Calíope, a fada. Mais ou menos do meu tamanho, mas alada, é uma velha conhecida das ruas de Camelot. Conheço Calíope desde anos atrás, na época em que ambos éramos crianças abandonadas tentando ganhar a vida nessa cidade. Hoje Calíope é uma cortesã bem-sucedida, dançarina bastante requisitada em diversas tavernas da cidade. Tenho dúvidas se ela realmente gosta de mim, ou se gosta de lembranças que minha presença desperta.
Em meu mundo, goblins são tão mal vistos quanto seriam neste mundo, se existissem aqui. Na maior parte das lendas deste mundo, goblins são criaturas feitas através de magia, esculpidas em barro ou areia. A biologia dos goblins no meu mundo é mais parecida com a dos humanos – com a diferença de que existe um componente mágico que tira os filhotes das barrigas das mães nas últimas semanas e os transfere para úteros mágicos esculpidos em barro, que promovem o final da gestação e garantem alguns poderes – limitados – ao bebê goblin.
O desenvolvimento e aprendizado dos bebês também é bem superior ao humano, sendo mais rápido para atingir a autonomia – como na maior parte dos animais. Semelhante a alguns animais, os pais também não exercem um papel de relevância na criação dos goblins. Depois de considerados adultos, os goblins precisam cuidar de si sem intervenção externa, e passam a tomar suas próprias decisões.
Ou seja, um ciclo de vida desenvolvido para despertar o quanto antes as melhores ideias possíveis num grupo de seres altamente capazes. Jovens goblins decidem, acredite ou não, se deverão estudar ou trabalhar.
Eu fui um dos poucos que resolveu aprender a ler e escrever, estudou o básico de ciências.... porque esperava que, em tese, esses conhecimentos me levariam a ser um pouco mais respeitado....
Bom, em meu mundo eu tive alguns relacionamentos... não muito longos ou complexos, mas tive. Eu sou um goblin boa pinta.
Uns dois anos atrás eu tive um rápido namoro com a Crotilde, que trabalhava numa taverna na saída sul da cidade. Por isso que eu também fiquei proibido de andar na parte sul da cidade por uns meses, mas isso é outra história. Crotilde não era muito bem uma dama, mas dava um caldo gostoso.
Dama mesmo foi a Farisgele, a sátira. A gente tinha a mesma altura, o que facilitava bastante as coisas – mas a família dela não ia muito com a minha cara. Eles que acabaram obrigando a pobre coitada a terminar comigo.
Depois dela me envolvi com a Ermenegilda e a Josephina, mas esses relacionamentos foram muito rápidos, efêmeros.... E nenhuma das duas conseguiu comprovar que o filho era meu, então, terminamos sem muito impasse.
Eu estive treinando.
E refletindo.
Vir para esse universo não foi uma coisa ruim. No meu plano de existência original eu vivia sozinho, era ostracizado, caçado, ameaçado e maltratado em todo lugar, por todo o tipo de raça, classe social, posição hierárquica. Pra viver com um mínimo de dignidade, era obrigado a roubar, lutar, matar.
Sob um ponto de vista, tudo continua igual, neste plano. Só que aqui eu tenho poderes.
E alguns amigos, o que faz toda a diferença também.
Então, acabei desenvolvendo esse poder... que me permite ir pra um novo plano de existência. Só que esse plano é só meu – só eu tenho acesso. Consigo trazer algumas coisas e pessoas pra cá, mas ainda não consigo me mover, interagir... não consigo fazer muita coisa.
É um poder maneiro, e já me salvou de muita roubada.
Mas isso me apavora.
Por quanto tempo essas coisas e criaturas vão ficar aqui? Há um limite? Elas ficam vivas, ou vão eventualmente morrer? Morrer, perecer – por fome, ou radiação, ou extenuação, ou... ou qualquer coisa que seja.
E se houver um limite, e eu morrer quando chegar nesse limite? E se um dia eu estiver dormindo, e acordar com tudo isso explodindo de dentro de mim, pra fora, porque meu corpo não conseguiu mais conter?
Do meu plano original de existência, eu não tenho nada. Nenhum objeto, nenhuma ferramenta ou arma, nada. Nenhum tipo de souvenir. Tudo que possuo hoje, alcancei neste plano de existência em que vivo. Comprado aqui, ganhado aqui, roubado aqui.
E os mais preciosos desses itens, são invisíveis: Meus poderes, minhas habilidades, trazidas pelas Gift Coins, imbuídas em mim como pagamento pelos meus esforços nos contratos que vão surgindo eventualmente.
Você pode pensar que por ser um goblin, neste mundo, me torna especial – por ser único, um viajando interdimensional. Mas não, ser um goblin – por mais que eu tenha orgulho na resiliência e astúcia de minha raça – não é algo que escolhi pra mim.
Mas ser um empreiteiro, buscar os vícios e perigos dessa vida de mercenário, foi uma opção. É o custo a ser pago para poder ter acesso aos dons, e eu pago com prazer, sem nenhum tipo de medo ou arrependimento.
“It was all for this”, como alguns empreiteiros dizem.